Tic-Tac

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa, para o Castelo Drácula
Acordei com o som das engrenagens daquele maldito relógio que ressoa em minha mente. O barulho ensurdecedor que nunca cessa não é apenas um simples "tic-tac"; está mais para um motor a vapor. Quando meu tio me presenteou, indaguei sobre a fumaça que saía dele.
— É como uma respiração. Cuide bem do relógio e mantenha-o hidratado com dois litros de água por dia — disse ele.
O velho era caduco, cuidava do relógio como um bicho, mas, por hábito, acabei fazendo o mesmo. Há um pequeno compartimento atrás dele, como um reservatório de água. Está quase sempre vazio. Essa coisa bebe muito. Começo a me questionar se não precisa de comida também.
Mas o som não para, não reduz. Já estou há noites sem dormir, porém não vou quebrar o presente que ganhei. Talvez ele esteja com raiva; afinal, emite uma estranha fumaça que inunda a casa. Não lhe dou atenção suficiente e está me importunando por isso? Deveria dar-lhe mais cuidados, mas o que relógios gostam de fazer? Talvez esteja com fome, mas o que devo dar de comer? Óleo? Seria bom para acabar com o som e me deixar dormir.
Liguei para meu tio e nada dele atender. Já não aguento mais; irei abri-lo. Pego meu kit de ferramentas, que estava junto de umas tralhas no quintal, e desparafuso o fundo do relógio. Quantas engrenagens! Precisa de tudo isso para funcionar? Há uma bomba ligada ao reservatório de água. Isso explica por que nunca precisou de tomada ou pilhas, mas também explica o som e o vapor. Deveria desligar a bomba, mas isso seria o mesmo que matá-lo. Ora, pois, no que estou pensando? É um relógio e não um ser pensante.
“Tic-tac, tic-tac, tic-tac”. Como posso dizer que não pensa, se é ele que faz todo o trabalho de contar segundo por segundo, dando-me horas e minutos, até despertar em momentos oportunos? Talvez eu já esteja louco pelas noites em claro, mas cuidar do relógio parece razoável. Volto à rotina de sempre, lubrifico suas engrenagens e abasteço seu tanque, mantendo-o em atividade constante. Adapto-me aos sons e construo uma janela atrás. Hoje já não há mais insônia, e a sutil fumaça que emanava agora escapa como uma chaminé.
Até que acordo com um estrondo e, então, silêncio. Sem tic-tac, sem motor, apenas o vazio. Levanto e corro até o relógio. Seu pêndulo estava parado, os ponteiros já não contavam mais o tempo e a fumaça, agora, era só uma simples neblina que, aos poucos, se dissipava. Observo a parte de trás e está cheia de furos. Desparafuso a tampa e lá está: o tanque furado. A água se foi, como se ele tivesse sangrado até a morte.
Deito-me à noite com um vazio imensurável em meu peito. A casa fora tomada por um silêncio angustiante. Não consigo dormir, é como se arrancassem um pedaço de mim. Chamei alguns relojoeiros para saber se daria jeito, mas ninguém jamais havia visto algo como aquilo. Resolvi visitar meu tio. Ele deve saber como trazê-lo de volta. Chego à sua casa e, apesar de tocar a campainha, ninguém atende. Vou até uma janela, de onde saía muita fumaça. Não dá para ver nada, mas parece haver algo impedindo minha passagem.
Encontro uma barra de ferro junto com algumas sucatas no quintal e a utilizo para remover seja lá o que estiver no caminho. Um estrondo, e a fumaça se torna uma névoa translúcida. Quando entro na casa, a ficha cai. O objeto que derrubei era como o meu relógio, e os furos que encontrei mais cedo são os mesmos que fiz com a barra. Agora já estava feito. Ouço passos e, assustado, levanto o relógio caído e saio por onde vim, com as mãos sujas de óleo. Talvez eu possa me redimir se conseguir criar outro igual e presenteá-lo ao meu sobrinho, para que cuide dele como eu não cuidei.
Texto publicado na Edição 14 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa
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